terça-feira, 15 de março de 2011

TRANSIT

TRANSIT é um texto que começa a abrir caminho no aeroporto de Milão, numa daquelas situações de black-out informativo em que nem se parte nem se sabe quando se vai partir. Para resistir à fúria, praticam-se pacatos exercícios de observação: cartazes, painéis, sinais, montras, carrinhos, fardas, bichas. Repara-se então nos mínimos e nos máximos de sobrevivência que o aeroporto oferece, desde cigarros e pastilhas elásticas até casacos de arminho e massagens VIP. Repara-se nas pessoas: os que andam perdidos, os que avançam em piloto automático, os que parecem solitários, os que têm ar de pessoa colectiva. E surgem, antes de tudo, os nomes dos dois protagonistas, JET LAG e CHECK IN, como se os nomes fossem a caverna e os tesouros, os ladrões e o abre-te sésamo. De súbito, torna-se óbvio que os tijolos da construção que a cabeça se atreve a erguer, ainda sem alicerce, se inspiram na massa de semelhança entre a pequena cidade aeroporto e a cidade securitária formatada pelo neoliberalismo. Assalta-nos a recordação inolvidável das reuniões da Câmara Municipal do Porto em que o cidadão distraído pode descobrir o «projecto de cidade» que lá se trama – feita de falsos hotéis de charme, spas new age, mais parkings do que parques, restauração rápida disfarçada de gourmet, e bué da lojas de griffe... – é tão-só uma cópia a céu aberto (?) dos corredores de aeroporto. E são essas estudadas parecenças, a par dos terríficos sentidos de que são portadoras, que nos convencem a não deixar a «peça» nascente no lixo do devaneio.
De que maneira a luta de classes se manifestaria no espaço confinado e videovigiado de um talk show televisivo? É a esta pergunta que encarregamos JET LAG e CHECK IN de ir respondendo, dotando-os da possibilidade e da vontade de criar rompimentos, de furar o aquário onde asfixiam com a ponta acerada das suas pequenas e grandes raivas.
TRANSIT foi-se escrevendo, via correio electrónico, entre o Porto e Calcutá. É um objecto do qual gostaríamos que se conservasse a estranheza (também de o termos levado a bom termo) e o peso paradoxal do improviso (ping-pong entre autores e entre personagens, os primeiros distantes, mas próximos; os segundos próximos, porque reunidos pelo espaço improvável da representação, mas irremediavelmente distantes). Será possível um objecto em palco manter-se em trânsito? 

Regina Guimarães e Saguenail, Março de 2011

Sem comentários:

Enviar um comentário